sexta-feira, 20 de maio de 2011

A Zona Turva

Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras da insanidade. De fato estranhas coisas aconteceram e lembro-me bem daquela insólita noite em que fazia meu vigésimo terceiro ano neste mundo.  Podia ouvir o rumor abafado da festa que ocorria além da única entrada que havia para meu escritório, uma alta porta de feitio raro e bem trabalhada por, um bom artista. Havia deitado em minha ótima poltrona de exímio couro importado, pois sucumbi ao cansaço provocado pela preparação de tão singular festa; 300 convidados, em sua maior parte compostos por ilustres indivíduos, vindo dos mais remotos cantões de meu país apenas para prestigiar meu evento. Não que não fosse um bom anfitrião, mas o aconchego de meu excelente escritório, com sua lareira adornada, e seus móveis antigos de boa madeira de ébano trazida de exóticos e longínquos países, me causava uma irresistível atração. Abri uma garrafa de notável vinho rubro, o qual bebi intensamente, levando minha exausta mente a beira do entorpecimento total, neste estado de semi-consciência foi quando arrebatou-me a experiência mais surreal que já tinha tido em toda minha existência, acredito que muito poucos dos que já andaram sobre este planeta tenham passado por semelhante vivência e menos ainda tenham sofrido tamanho desespero inexplicável ao qual fui impelido. Tinha entrado nesta misteriosa condição que é a zona turva entre o desperto e o começo do sono, um momento tão singularmente fantástico que nunca pode ser definido por limites, afinal, ninguém conhece sua divisa. Inúmeras vezes em outras noites ao estar cruzando a fronteira do sono acabava por acordar de sobressalto com o coração acelerado, havia ouvido há muito tempo que isso ocorria como uma interpretação errônea do cérebro que ao perceber a consciência retirando-se confundia esta ausência com a morte do ser, acionando assim um mecanismo de emergência e por isso o despertar alarmado. Não tenho certeza se acredito nesta teoria que coloca o cérebro numa condição de ser interpretativo por ele próprio, ainda assim o que me ocorreu nesta infame noite foi longe de ser este habitual.  Acabei preso na zona turva por um tempo que poderia muito bem ser eterno, não cruzava seu extremo, mas também não podia despertar, não bastasse o horror por si de estar encarcerado nesta condição, visões e alucinações começaram a agredir meu já aterrorizado ego. Consciente de estar em meu luxuoso escritório, a poucos metros de meus 300 ilustres convidados tomando seus preciosos licores, pouco podia fazer para repelir a realidade extra que meus olhos e meu corpo inteiro estavam começando a sentir, nesse momento de extremo horror sentia-me como rasgado em dois, vivendo duas verdades em um mesmo lugar, o paradoxo era insuportável, a repugnante realidade extra que se apresentava começava a se aparentar tão verdadeira quanto a outra, conforme a distinção sumia, maior era o sentimento de atroz dualidade. A condição funesta ainda não está completamente descrita, o material objetivo da realidade intrusa era tão medonhamente perverso que pensar nele como mera fantasia já seria quase insuportável, senti-lo como verdade era o inferno tomando forma em meu faustoso escritório. Sim meu escritório, soberbo com seu mobiliário e livros de toda sorte, uma hora sendo isto, outra se transformando em uma desprezível saleta de compensado arruinado, o sublime e o odioso convivendo na mesma verdade. Como uma mente poderia suportar tamanho disparate? Nenhum intelecto foi feito para conceber esta aberração. O sonho, se é que assim posso chamá-lo, prosseguiu em sua horripilância, aprofundando ainda mais aquele inferno, agora podia sentir como se estivesse sozinho desde sempre, solitário não em minha elegante poltrona de couro, mas em uma cadeira ordinária que machucava meu corpo, o egrégio vinho que antes tomava era agora uma vulgar bebida dessas que só se vê em mãos de vagabundos. Que deus eu ofendi para merecer tão exemplar punição? Meu pavor era algo para o qual não se existe nome na terra, a descida àquele inferno continuou, agora podia ver grandes períodos de uma vida medonha, uma vida em total sofrimento e solidão, o perverso sonho agora incutia falsas lembranças em minha mente, construindo de fato um outro eu por cima de meu eu anterior, um eu composto apenas de desespero colossal que obliterava qualquer felicidade que havia no original. Por pequenos momentos podia voltar a realidade, ao meu exímio escritório, podia ouvir o riquíssimo baile acontecendo além de minha grande porta ornamentada, isso apenas para em seguida ser precipitado de volta ao abismo daquela ilusão doentia. Agora me era mostrado uma rotina pavorosa de um trabalho sem sentido, mais, a ignorância e a mediocridade afetando tudo e todos, não é possível eu pensava, justo eu, tão versado indivíduo, sempre cercado por entendedores de todo tipo, imerso em conhecimento, como pode este maligno sonho querer me igualar a condição de um parasita insensato? Um burro guiado por um sistema defeituoso, apaticamente sendo levado ao penhasco para ali dar cabo a uma vida repleta de sofrimento sem fim e vazia de qualquer sentido maior. Logo eu que acreditava no esplendor da condição humana, sim, de fato podia entender sua beleza, sentado em minha celestial poltrona de couro importado. Agora nesta alucinação aterradora me vejo como um mínimo pedaço de nada, fracassado e infeliz, rodeado por ruínas do que um dia foram boas idéias, numa existência que já era equivocada antes mesmo de ser existência. Foi demais, minha sanidade já em frangalhos, sabia que não poderia jamais escapar intocado daquela experiência infernal, ciente de que atingira o âmago do sofrimento, a compreensão total da dor, iria agora subir à realidade, não havia como ir mais fundo. Estava certo e ao mesmo tempo avassaladoramente errado, como previra, ao encontrar o cerne daquela provação hedionda iniciei meu retorno a realidade, o que vi entendam, foi imensuravelmente medonho, instantaneamente ao entendimento meu ego se partiu para sempre, e minha própria alma não foi capaz de suportar a verdade, perdi minha sanidade e minha própria noção de eu. Conforme sentia-me mais desperto, via com mais clareza as paredes de compensado embolorado que constituíam minha saleta, sentia com mais intensidade a dor provocada pela péssima cadeira em que me sentava, lembrava mais fortemente de minha evidente solidão naquela casa miserável, entendia mais profundamente a ausência de sentido em toda a existência, enfim acordara por completo, por todos os deuses, o inferno era a minha realidade.

Um comentário:

  1. Interessante a realidade dual da personagem. De fato há uma semelhança com meu conto, o conflito mental. O que mais gosto é a descrição, o modo como você elucida o local é bem minucioso e o terror da personagem gerou até um desconforto em mim,rsrsrs.
    Vamos compartilhar ideias sim!

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