sexta-feira, 24 de junho de 2011

Para aqueles assim como eu, céticos com o mundo, para aqueles que acreditam que tudo não passa de um plexo de acontecimentos que resultam na existência, para esses contarei minha história, no fim espero convencê-los de que existe uma grande e essencial verdade impossível de ser ignorada.

Escrevo este relato em raros momentos nos quais posso alcançar consciência suficiente para tal, tais oportunidades tornam-se progressivamente mais inconstantes e os inúmeros remédios que compõe minha dieta diária parecem inócuos em amortecer meu terror. Em retrospectiva acredito que minha história deveria começar ambientada em uma noite de tormenta, o quadro macabro se completaria com algum mau agouro a tocar a sineta de minha enorme casa vitoriana, raios cortando o negrume de uma noite que só poderia pertencer a um tenebroso pesadelo, no fim em minha porta estaria uma figura medonha trazendo o próprio inferno em sua sombra. O que aconteceu de verdade não corresponde a nenhum estereótipo de contos de horror, e talvez essa seja sua cruel e avassaladora singularidade que plantou a semente da insanidade em minha mente.

Uma tarde ensolarada de outono, em minha casa suburbana tingida em tons de bege a combinar com outras casas da ordinária vizinhança de classe média. Era unicamente mais um dia indolente do qual eu apenas esperava o fim, apenas para repetir o processo no dia seguinte, perseguindo um desfecho ilusório que sequer era questionado. Ao ouvir alguém bater em minha porta não pude reprimir o desagrado por ser incomodado, quem ousaria trazer-me companhia e destruir minha solidão. Abri a porta e deparei-me com um trivial tipo executivo vestindo um genérico terno azul-marinho - por deus só pode ser algum religioso desprezível trazendo suas horrendas palavras de amor e salvação, se assim fosse iria enxotá-lo como a um cachorro vadio que cismasse em estragar o minúsculo cubículo de grama que era meu jardim. O que o tipo executivo ordinário falou provocou-me um misto de surpresa cômica e raiva antecipada, perguntou-me o que eu precisaria para ser feliz, petulante questionamento causa-me náuseas – foi minha resposta. Não abalado ele abriu sua maleta de couro falso, e lá estavam grossos maços de dinheiro, 1 milhão em notas de cem. Minha ira chegou a seu ápice, - que tipo de brincadeira doentia é essa? O sujeito alcançou-me uma folha digitada e não pude conter a risada ao ver que se tratava de um contrato, o que estava a ser vendido? Minha alma. Basta assinar, não sou o demônio, as flores não morrem ante minha presença, não trago a escuridão comigo, não existe um inferno para reivindicar algo que sequer está sob seu controle – sua expressão impassível. Só pode ser um louco, só pode ser uma grande piada criada por alguma insolente corporação, algo que a massa medíocre adoraria ver numa coletânea de vídeos, quem está disposto a vender sua alma? 15 segundos de filmagem ao custo de 1 milhão, uma pechincha para uma grande empresa. Foda-se, se esse infeliz me der a maleta ela será minha e ninguém pegará de volta. Certifiquei-me de que o dinheiro era real, assinei toscamente meu nome na folha de papel e levei mãos à maleta, praticamente arrancando-a das débeis mãos daquele ator fracassado, acreditei até mesmo poder ver a câmera escondida em uma van estacionada nas proximidades. Bati a porta e virei o dinheiro em minha mesa, contei cada maço para ter certeza do valor, estava tudo ali, 1 milhão em notas de cem.   

Com o passar dos dias aferrei-me a idéia de que fui parte de algum tipo de reality show bizarro e em breve esperava ver o grandioso anúncio de mais um programa explorando a banalidade da realidade como se alguém de fato se surpreendesse com ela. Inicialmente apenas guardei o dinheiro, o medo de que alguém tentasse tomá-lo de volta me fez guardá-lo antevendo alguma possível batalha judicial. Passadas algumas semanas senti-me seguro para começar a usá-lo, ainda que em pequena quantidade. No final de 1 mês minha razão já dava sinais de estar sendo desafiada, nenhum programa surgiu, eventualmente decidi pesquisar por rumores da existência de tal projeto, não encontrei nenhuma referência.
Dois meses após, sentia-me nitidamente incomodado, aquilo que antes parecia uma evidente piada era agora um insolúvel mistério que progressivamente tomava conta de meu dia, minhas buscas por uma resposta tornaram-se uma leve compulsão. Procurei na vizinhança por alguém que tenha recebido alguma estranha proposta nos últimos meses, nada descobri, apenas a desolada expressão de surpresa daquelas pessoas acostumadas e esperar o fim do dia, acostumadas a seguir rumo ao enganoso desfecho inquestionável, apáticas e incompreensíveis ante minha experiência surreal. O monstro estava crescendo, dia após dia podia senti-lo reivindicando  uma parte maior da minha existência, tomando minha alma pedaço por pedaço, eu um mero espectador observando minha vida sendo devorada pela terrível obsessão.
 
Nessa época era apenas o não entendimento que me assolava, esperava encontrar uma resposta e por isso mantinha algum controle. O pior ainda estava para acontecer, minha falha ao encontrar uma razão para tudo aquilo levou-me ao desespero da superstição, passei a considerar a verdade sobrenatural naquela experiência toda, neste momento deixei de tocar no dinheiro, havia gasto apenas 50 mil dos 1 milhão, e agora não podia sequer pensar em usar aquele dinheiro maldito, como se minha alma pudesse ainda ser salva. Guardei em um cofre que comprei e decidi que iria viver e tentar esquecer  tudo, esquecer o dinheiro e talvez assim me redimir, procurei por mais um precário desfecho, frágil como um castelo de cartas pois nunca se pode questioná-lo sem arruinar tudo, essa raquítica crença que move toda a existência, uma doente esperança forçada a reprimir a razão pelo algo ilusório.

Passei a usar remédios na tentativa de calar minha mente, tentei todas as possibilidades, no fim era impossível fugir, em minhas corridas pelo parque acreditava ver demônios prontos a me abordar e reclamar o que lhes era de direito, cada vão escuro criado pelas sombras deflagrava as mais odiosas fantasias em minha mente, afastei-me de qualquer convívio social desconfiando de todos a minha volta.

Havia reduzido minha vida a uma tenebrosa sensação de pavor irrefreável, passava o tempo em minha sala amaldiçoando o dia que aceitei o detestável dinheiro, olhava para o negro cofre que continha o motivo de minha ruína. A loucura estava instalada, o demônio sentado em minha mente, passei a desejar que aquele vulgar executivo viesse e levasse de vez minha alma, apenas para terminar com o sofrimento da espera. Passei a não sair de casa, minha razão ausentando-se cada vez mais, passava os dias sentindo nada além de medo, e apenas nos momentos de lucidez podia lembrar o motivo de meu assombro, grande parte do tempo encontrava-me unicamente tomado por um terror inominável, ausente de qualquer sentido objetivo, composto apenas de pura emoção tenebrosa de pavor, o medo em sua forma pura. Definhei até o ponto de ser encontrado semi morto por inanição, fui colocado em uma instituição médica, os malditos me salvaram para prender-me no inferno da minha condição, vejo que logo serei apenas um animal, minha alma foi verdadeiramente levada em um sentido muito além da própria verdade ou mentira de sua existência e a de deuses ou demônios. Se realmente havia um demônio a comprar minha alma e se realmente há uma alma para se vender é algo que não tem importância alguma, a grande verdade é a verdade como ela se apresenta;  vendi minha alma e por isso estou pagando o preço.