segunda-feira, 30 de maio de 2011


“Da nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.”

-Está certo que desejas a verdade? – foi a pergunta.

-A verdade liberta, viver em dor é melhor a viver aprisionado – foi minha réplica.

Minha resposta deu início a viagem, em companhia de tão inconcebível guia fui levado em uma descida a compreensão, o trajeto para o primeiro nível não existiu num sentido espacial, ainda que tenha percebido certa mudança no interior de minha mente, ainda estávamos naquela clareira na floresta. Chegamos – disse meu guia. – Não é possível, estamos no mesmo lugar, as árvores continuam árvores! A floresta toda está aqui, nem sequer saímos do lugar!

- Não percebe? Este nível é a soma de tudo, compreenda, estamos em uma descida, aqui você sente, pensa e lembra. Aqui um arbusto é um arbusto, e o cheiro da floresta é apenas o cheiro da floresta.

-Irritar-me é sua função, maldito? Essas palavras me são vazias, de que adianta ter-lhe chamado se ia apenas mostrar-me a realidade enfadonha a qual estou acostumado?

-Perceber esta realidade é necessário para apreciar nossa jornada, deves entender o fim para compreender o princípio e ao princípio chegaremos em breve, nossa descida não é longa mas no fim você irá se arrepender, ao menos tente entender e assim somente talvez irá manter sua sanidade.

Tentando entender tais nebulosos enigmas coloquei-me em caminhada,a selva ao meu redor; podia de fato cheirá-la, podia de fato vê-la, senti-la tocando minha pele. Além de tudo, podia pensá-la, este é um arbusto espinhoso, está é uma flor vermelha. Indo mais além, podia lembrá-la, esta flor é igual a que tenho em minha sala. Mais longe podia compreender-me moralmente nesta floresta, não irei arrancar esta bela planta ainda que sinta vontade.

- Sinto que está pronto para prosseguirmos, desçamos, pois, ao próximo nível, ficará surpreso com o que irá encontrar, prepare-se, junte sua coragem e me siga.

Andamos na selva por mais alguns minutos e meu guia parou repentinamente, é aqui, exclamou, e em seguida abriu um alçapão no próprio chão da floresta, mal pude acreditar no que via, uma escada em espiral descia por aquela entrada surreal. Descemos pela escada, ao redor apenas escuridão, eventualmente formas incompreensíveis cruzavam subitamente nosso caminho em meio as trevas, subiam para a floresta que era sua única saída. Continuamos descendo naquele cenário monótono e desolador por horas, a escada em hélice estendendo-se infinitamente para baixo, para a escuridão que guardava o próximo nível. A exceção das eventuais aparições que cruzavam nosso caminho, o cenário era sempre o mesmo, os degraus perfeitos para uma passada rítmica, o escuro profundo ao nosso redor, o tempo de certa forma pára quando não existem mudanças a serem percebidas, imaginava a quanto tempo estaríamos naquela escadaria? Horas, dias? Não sentia cansaço nem ao menos sentia meus músculos trabalhando, percebi com assombro em que realidade insensata havia me colocado, tendo estes pensamentos senti o primeiro medo florescendo em minha alma desde o começo da jornada, mal podia imaginar que aquele mal estar estava muito longe do real desespero que me aguardava. Como se tendo consciência de meus pensamentos meu guia parou repentinamente quase me fazendo trombar com sua estranha forma, encostar-se àquele ser era meu último desejo, já era demais sequer saber de sua existência. Em sua frente uma porta se abriu, mostrando-nos o segundo nível.

Ao entrarmos naquele lugar medonho, o sentimento de opressão foi instantâneo e terrivelmente devastador, sentia-me completamente sujo e culpado, como se houvesse chacinado friamente centenas de homens. De início mal pude me mover, tentava lidar com a desmedida culpa que estava massacrando-me, nunca imaginei sentir tamanho mal estar e preferia agüentar torturas físicas quaisquer a enfrentar tal sentimento julgador. Suportei a sensação de peso colossal esmagando minha consciência até meu guia jogar um pano preto sobre meu corpo, possuía apenas dois furos para meus olhos, como uma fantasia infantil de fantasma, imediatamente senti o alívio milagroso, cai de joelhos e pude respirar novamente. Conforme recuperava o autocontrole pude olhá-lo melhor, aparentemente ele não era afetado pelo mal daquele lugar, criatura medonha e insensível, não poderia ser diferente.

Em seguida coloquei-me de pé e somente neste momento tive consciência que não estávamos sozinhos, uma criatura estupendamente grande postava-se no meio do que agora eu reconhecia como uma espécie de amplo calabouço. O terrível ser carregava um grotesco machado em uma das mãos e um igualmente imenso livro de ferro na outra, em um de seus lados um imenso baú e no outro um alçapão aberto. Logo percebi a medonha dinâmica daquele lugar; de outra porta no fim do calabouço saiam as aparições seguindo direto ao encontro da temível criatura com o machado, pude entender que as coisas desejavam subir pela escada em espiral, assim como entendi que aquele terrível sentimento que antes sentira emanava daquele monstro e que agora, escondido por minha tosca fantasia de fantasma, ele não podia colocar seus olhos julgadores em meu espírito. 

A realidade do que acontecia à maior parte dos que iam de encontro ao monstro é nefasta, o censor consultava algo em seu imenso livro de ferro e na maioria das vezes destroçava aquilo que pleiteava passagem com apenas um golpe, outras vezes abria seu baú e de lá tirava as mais variadas fantasias, algo que seria cômico se não fosse feito por tão desoladora monstruosidade, após vestir a seu gosto, permitia a passagem. Aquilo tudo me parecia extremamente incompreensível, na verdade não podia sequer entender o que eram aquelas coisas que saiam pela porta, minha mente via vagas formas humanóides mas eu podia sentir que se tratavam de algo mais, podia até mesmo senti-las como sua essência, mas incapaz de interpretá-las com minha razão.

Hipnotizado por aquele espetáculo grotesco continuei imóvel apenas assistindo a tudo acontecer. Vi o que minha mente entendeu como uma linda mulher nua dirigindo-se ao monstro, porém senti o que realmente era, uma luxuriosa sensação de sexo e violência em uma mistura abominavelmente atrativa, deus, algo assim faria de qualquer homem um louco desmedido. O resultado não poderia ser diferente; a forma feminina imediatamente fatiada em dois. Agora uma criatura encapuzada saía pela porta, esta diferente de todas que vi antes, foi meu segundo impulso de medo, dessa vez não medo, mas pânico, pude ver o próprio monstro se retraindo, maldição, se aquele titã podia sentir receio aquela coisa tenebrosa deveria ser muito perigosa. Percebi que estava rezando para a criatura fazer logo seu trabalho e banir aquele demônio, o que foi feito mudou o padrão até então, vi que ele foi incapaz de atacar seu algoz, em um rápido movimento colocou-o dentro do alçapão que se abria ao seu lado.

-Ele o mandou de volta ao nível inferior – falou pela primeira vez naquele lugar meu guia. – veja se até mesmo este gigante não pode eliminar aquilo, você quer realmente ir para o lugar que o originou?

Com a ausência do ser meu medo havia esvaecido e minha tola coragem retornara, sim eu iria até o fim, esta fora minha escolha antes e agora não havia retorno. O guia iniciou a caminhada até a porta de onde saiam os que seriam julgados e antes de a cruzarmos pude ver mais uma singularidade, algo já fantasiado cruzou o calabouço, surpreso fiquei ao perceber que o fantasiado passava direto pelo monstro, não pude apreciar por muito tempo a situação, em seguida já cruzávamos a fronteira para o verdadeiro inferno.

Dessa vez não havia escada, desabei nas trevas e continuei caindo até perder a consciência. Acordei em um mundo desconexo, qualquer razão ou ordem passou longe de conhecer aquela terra. Acima de tudo, aquela realidade era constituída de sentimento materializado, tal como sentira ao ver as criaturas do nível anterior, agora a própria substância da realidade possuía um sentimento como essência, uma emoção dentro de uma emoção. O pior era a completa ausência de freios, nada continha aquele turbilhão de sensações, estava no mundo dos extremos, aquela sim era a liberdade em sua essência, e que hediondo inferno era esse. Sentia-me violado por todo tipo de sentimento primitivo, compreendi que só podia existir naquele lugar pois ainda possuía uma mente que desesperadamente tentava filtrar o que eu sentia, ainda assim a sensação era medonha. Meu guia havia sumido e decidi explorar aquele estranho universo enquanto ainda podia manter meu eu parcialmente isolado de sua ofensiva. Vaguei por aquela terra devastada, vendo e sentindo absurdos, indo da alegria incapacitante ao desespero total, minha mente tornara-se um campo de batalha, podia sentir o dique se rompendo, prestes a permitir que aquelas sensações me invadissem por completo transformando-me em mais um de seus animalescos habitantes.

Tal como os sentimentos, o cenário variava sem nenhuma lógica, em determinado momento me encontrava vagando por um deserto infinito, sentindo as urgências mais básicas da sobrevivência, disposto a qualquer ação para conseguir meios de sobreviver, a sede a fome e a necessidade por abrigo, de certa forma sabia que não poderia morrer materialmente pois sequer existia concretamente naquela realidade, ainda assim minha mente absorta por tão avassaladoras necessidades ignorava minha razão, e prosseguia em suas conjecturas desesperadas para capturar mantimentos. E tão repentinamente como começava, era impelido a outra sensação e com este movimento o cenário também variava; agora estava na entrada de uma enorme caverna, o medo do desconhecido preenchia meu ser, sabia que deveria entrar, mas relutava e assim criava racionalizações do porquê não deveria prosseguir, assim fiquei por um bom tempo, lutando com meu medo primordial, até finalmente adentrar nas trevas e ai ser lançado a outro cenário e sentimento randômico. Agora uma cidade, podia perceber a escalada da complexidade das emoções, embora ficasse claro a importância dos sentimentos primordiais, podia entender novas e intrincadas interações surgindo e tal como elas o ambiente de fato tornava-se mais complexo. Buscava por algum fim na cidade que como num cruel pesadelo ia aumentando cada vez mais, o que antes poderia ser uma pequena cidade suburbana era agora uma enorme metrópole tornando minha busca algo inconcebível, nesse cenário o sentimento de tempo passando era o cerne do sofrimento, tendo tido a experiência com sensações basais e por mais desoladoras elas fossem, agora havia entrado num inferno de outro nível, percebia que a complexidade tornava tudo pior, era como adicionar escalas e mais escalas de sofrimento ao invés de existir apenas um plano de dor. A cidade crescia e crescia e as possibilidades de achar o que procurava diminuíam a cada momento, a antecipação do fracasso destruía minha vontade mas a idéia de permanecer inerte em tão perversa existência sem nenhum objetivo senão a medonha sensação de imobilizada derrota era totalmente inconcebível, permaneceria naquela horrível busca até o fim e apenas para evitar sentir pior sofrimento. Por fim acabei em interações dentro dessa que entendi como a interação última, a busca da verdade pela verdade, acabava descobrindo realidades sobre meu ser ao abrir portas aleatórias, ao andar em ruas e ter percepções espontâneas, mas no fim sempre me sentia correndo do tempo que estava a um calcanhar de me alcançar e aumentava sua velocidade me obrigando a fugir ainda mais.

Tive o que se poderia dizer de um tempo de uma vida nessa existência insana até certo dia inesperadamente encontrar o que tanto buscava, soube imediatamente que havia cumprido minha antiga missão, assim como soube que naquele mesmo instante criava-se para mim uma nova busca, mantendo assim a sensação de urgência contra o tempo inalterada. Havia em fim encontrado a grande resposta; a verdade é a busca e não o objetivo, tão logo apodera-se do objetivo uma nova busca torna-se a verdade. A procura deve sempre existir e a desolação que ela causa nunca poderá ser suprimida.

Não havia mais sentido em prosseguir naquele mundo, tendo a compreensão queria de fato vive-la em uma realidade material em que ao menos continha sentimentos opacos e não materializados como naquele mundo nefasto. Chamei por meu guia, que apareceu como se houvéssemos estado juntos todo este tempo.

-Estou pronto para voltar, você estava certo e a verdade sequer é realmente uma verdade, não estou mais livre por tê-la entendido, na verdade estou apenas mais ciente da real falta de liberdade da condição humana, agora me leve de volta.

As últimas palavras de me guia enfim me revelaram a mais importante e medonha realidade.

-Não entendeu não é mesmo? Essa é sua mente, nenhum homem deve conhecer assim as profundezas de seu próprio ser, agora você é apenas uma doença emocional, saber o que você sabe tornou-o uma verdade perigosa demais para sua mente consciente. O guardião do segundo nível jamais permitirá sua passagem, irá jogá-lo pelo alçapão de volta a este mundo todas as vezes que tentar passar. Nem uma fantasia poderá mascarar seu perigo, entenda, você teve uma vida para entender, ninguém pode suportar o entendimento total de uma vez só.

A realidade é simples, minha busca pela verdade aprisionou-me dentro de minha própria mente.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A Zona Turva

Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras da insanidade. De fato estranhas coisas aconteceram e lembro-me bem daquela insólita noite em que fazia meu vigésimo terceiro ano neste mundo.  Podia ouvir o rumor abafado da festa que ocorria além da única entrada que havia para meu escritório, uma alta porta de feitio raro e bem trabalhada por, um bom artista. Havia deitado em minha ótima poltrona de exímio couro importado, pois sucumbi ao cansaço provocado pela preparação de tão singular festa; 300 convidados, em sua maior parte compostos por ilustres indivíduos, vindo dos mais remotos cantões de meu país apenas para prestigiar meu evento. Não que não fosse um bom anfitrião, mas o aconchego de meu excelente escritório, com sua lareira adornada, e seus móveis antigos de boa madeira de ébano trazida de exóticos e longínquos países, me causava uma irresistível atração. Abri uma garrafa de notável vinho rubro, o qual bebi intensamente, levando minha exausta mente a beira do entorpecimento total, neste estado de semi-consciência foi quando arrebatou-me a experiência mais surreal que já tinha tido em toda minha existência, acredito que muito poucos dos que já andaram sobre este planeta tenham passado por semelhante vivência e menos ainda tenham sofrido tamanho desespero inexplicável ao qual fui impelido. Tinha entrado nesta misteriosa condição que é a zona turva entre o desperto e o começo do sono, um momento tão singularmente fantástico que nunca pode ser definido por limites, afinal, ninguém conhece sua divisa. Inúmeras vezes em outras noites ao estar cruzando a fronteira do sono acabava por acordar de sobressalto com o coração acelerado, havia ouvido há muito tempo que isso ocorria como uma interpretação errônea do cérebro que ao perceber a consciência retirando-se confundia esta ausência com a morte do ser, acionando assim um mecanismo de emergência e por isso o despertar alarmado. Não tenho certeza se acredito nesta teoria que coloca o cérebro numa condição de ser interpretativo por ele próprio, ainda assim o que me ocorreu nesta infame noite foi longe de ser este habitual.  Acabei preso na zona turva por um tempo que poderia muito bem ser eterno, não cruzava seu extremo, mas também não podia despertar, não bastasse o horror por si de estar encarcerado nesta condição, visões e alucinações começaram a agredir meu já aterrorizado ego. Consciente de estar em meu luxuoso escritório, a poucos metros de meus 300 ilustres convidados tomando seus preciosos licores, pouco podia fazer para repelir a realidade extra que meus olhos e meu corpo inteiro estavam começando a sentir, nesse momento de extremo horror sentia-me como rasgado em dois, vivendo duas verdades em um mesmo lugar, o paradoxo era insuportável, a repugnante realidade extra que se apresentava começava a se aparentar tão verdadeira quanto a outra, conforme a distinção sumia, maior era o sentimento de atroz dualidade. A condição funesta ainda não está completamente descrita, o material objetivo da realidade intrusa era tão medonhamente perverso que pensar nele como mera fantasia já seria quase insuportável, senti-lo como verdade era o inferno tomando forma em meu faustoso escritório. Sim meu escritório, soberbo com seu mobiliário e livros de toda sorte, uma hora sendo isto, outra se transformando em uma desprezível saleta de compensado arruinado, o sublime e o odioso convivendo na mesma verdade. Como uma mente poderia suportar tamanho disparate? Nenhum intelecto foi feito para conceber esta aberração. O sonho, se é que assim posso chamá-lo, prosseguiu em sua horripilância, aprofundando ainda mais aquele inferno, agora podia sentir como se estivesse sozinho desde sempre, solitário não em minha elegante poltrona de couro, mas em uma cadeira ordinária que machucava meu corpo, o egrégio vinho que antes tomava era agora uma vulgar bebida dessas que só se vê em mãos de vagabundos. Que deus eu ofendi para merecer tão exemplar punição? Meu pavor era algo para o qual não se existe nome na terra, a descida àquele inferno continuou, agora podia ver grandes períodos de uma vida medonha, uma vida em total sofrimento e solidão, o perverso sonho agora incutia falsas lembranças em minha mente, construindo de fato um outro eu por cima de meu eu anterior, um eu composto apenas de desespero colossal que obliterava qualquer felicidade que havia no original. Por pequenos momentos podia voltar a realidade, ao meu exímio escritório, podia ouvir o riquíssimo baile acontecendo além de minha grande porta ornamentada, isso apenas para em seguida ser precipitado de volta ao abismo daquela ilusão doentia. Agora me era mostrado uma rotina pavorosa de um trabalho sem sentido, mais, a ignorância e a mediocridade afetando tudo e todos, não é possível eu pensava, justo eu, tão versado indivíduo, sempre cercado por entendedores de todo tipo, imerso em conhecimento, como pode este maligno sonho querer me igualar a condição de um parasita insensato? Um burro guiado por um sistema defeituoso, apaticamente sendo levado ao penhasco para ali dar cabo a uma vida repleta de sofrimento sem fim e vazia de qualquer sentido maior. Logo eu que acreditava no esplendor da condição humana, sim, de fato podia entender sua beleza, sentado em minha celestial poltrona de couro importado. Agora nesta alucinação aterradora me vejo como um mínimo pedaço de nada, fracassado e infeliz, rodeado por ruínas do que um dia foram boas idéias, numa existência que já era equivocada antes mesmo de ser existência. Foi demais, minha sanidade já em frangalhos, sabia que não poderia jamais escapar intocado daquela experiência infernal, ciente de que atingira o âmago do sofrimento, a compreensão total da dor, iria agora subir à realidade, não havia como ir mais fundo. Estava certo e ao mesmo tempo avassaladoramente errado, como previra, ao encontrar o cerne daquela provação hedionda iniciei meu retorno a realidade, o que vi entendam, foi imensuravelmente medonho, instantaneamente ao entendimento meu ego se partiu para sempre, e minha própria alma não foi capaz de suportar a verdade, perdi minha sanidade e minha própria noção de eu. Conforme sentia-me mais desperto, via com mais clareza as paredes de compensado embolorado que constituíam minha saleta, sentia com mais intensidade a dor provocada pela péssima cadeira em que me sentava, lembrava mais fortemente de minha evidente solidão naquela casa miserável, entendia mais profundamente a ausência de sentido em toda a existência, enfim acordara por completo, por todos os deuses, o inferno era a minha realidade.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A prisão da alma

Não espero reconhecimentos por tão insensata, porém tão familiar história que escrevo a partir desta prisão em que me coloquei. Rabisco em um débil bloco de notas usando nada mais que um fragmento de carvão que porventura se colocou ao meu alcance. Não possuo um fim imediato, escrevo tais palavras pois é só o que me resta nesses dias infindáveis, ainda assim tenho como companhia uma vaga esperança de poder libertar-me deste claustro auto-imputado, do contrário serenamente aceitaria a insanidade corromper-me por completo até o momento final.

Tudo começou quando tive em minhas posses um grande bloco de granito, como e por que tão extravagante peça se colocou em minha vida é uma memória que já abandonei há muito tempo, creio que algo realmente importante e singular não necessite de um motivo, mesmo que haja um a princípio, claro. Veja, a valia está na própria idéia de ser e não no por que de assim ser, ou pelo menos assim julga minha razão, ou minhas paixões.

Estagnado em minha sórdida sala de estar, aquele tosco matacão de pedra permaneceu por algum tempo, e toda vez que botava os olhos naquilo, era assaltado pelo mesmo pensamento; de que serve este pedaço de pedra se não para virar uma escultura? Foi assim pensando que em pouco tempo coloquei-me a talhá-lo, o processo em si nada tem de extraordinário, e se me permitem admitir; é mais uma lembrança que mergulhou em um poço fundo demais para ser recuperada. Já a memória seguinte me é viva como se estivesse ocorrendo agora, ainda que como num sonho, encoberta por uma bruma espectral e sempre inatingível, oh sim! esse é o pior acreditem, posso vê-la e posso imaginar a estar sentindo, mas nunca revive-la de fato. Quisera eu tal lembrança ter se afundado não em um poço, mas em um oceano de águas negras e inalcançáveis, talvez se assim fosse não estaria hoje nessa condição desprezível, nem teria por tanto tempo vivido nas costas de uma procura insensata.

Retirei daquela pedra a melhor coisa que já me acontecera, e por que não? A própria felicidade se é que está existe de fato. Contemplar meu achado era a atividade diária, retornar após um longo dia e poder encontrar tão maravilhosa jóia em meu infame salão sextavado dava um sentido a minha existência. Nesse ponto minhas palavras devem ser aceitas sem dubiedade; ninguém jamais viu aquela idéia que colocava-se em meu salão, acho que nem poderiam, apenas eu conseguia apreciar com total exaltação as afeições provocadas pela interação que se formara e me é difícil definir precisamente qual meu estado, assim como sempre é difícil para alguém entender as paixões da alma. Hesito em dar o próximo passo neste relato, tal é o tormento que toma conta de meu espírito, tamanha desventura insuportável me causa um mal físico até mesmo agora e peço desculpas se me tornar lúgubre a partir deste momento, mas angústia indefinível como essa não pode ser contida.

Recordo o trágico dia em que adentrei em meu salão em uma noite de outono, atroz foi meu desespero ao perceber que o motivo de minha ventura estava mudado, rachaduras e trincas pipocavam por toda sua superfície. Incrédulo a princípio não entendia como não as tinha visto antes, que demônio pavoroso havia pousado sobre minha mente e me impedido de entender tal realidade? Logo, porém, meu ardil já estava em ação, e neste preciso momento, acredito, foi quando me coloquei neste vórtice irrecuperável de insensatez. Minha trama era simples em sua prática, jamais imaginei, entretanto, que suas conseqüências seriam tão complexamente medonhas. Iria restaurar a superfície danificada! Isso me demandou dias de estudo, compreendam, não é simples trabalhar com o material ao qual me dispunha, seu conteúdo metafísico é pouco entendido a despeito de inúmeras teorias, todas incompletas como fui posteriormente descobrir. Eventualmente logrei um resultado satisfatório, agora posso entender com mais clareza a evidente distinção entre o antes e o depois, mas na ocasião meu júbilo era tanto que preferi me enganar e cegar minha percepção deste fato perverso.

Acreditando ter novamente a situação como no princípio continuei feliz em minha existência, ignorando aquele ruído irritante que persistia em agulhar o fundo da minha mente, aumentando com o passar dos dias até um ponto em que não podia mais ignorá-lo, por maior que fosse minha vontade. Junto deste entendimento tive novamente uma revelação;  tudo havia mudado novamente, desta vez não apenas rachaduras e trincas, o estrago era terrível, o resultado disforme ameaçava corroer completamente minha sanidade, minha única ação foi cair de joelhos a contemplar a infernal desolação que a visão me provocava.

 Meu temperamento e caráter sofreram uma alteração radical, a tristeza de minha alma aumentou até se tornar em ódio a tudo e todos. Procurei culpados por aquela atrocidade, culpei e amaldiçoei deuses e mortais, como eles podiam ter feito isso, como alguém pode ter tido a perversidade de destruir minha felicidade, há de ser um psicopata alucinado! Me deixei levar por superstições doentias, acreditei ser vítima de pragas arcanas esquecidas a milênios e por fim voltei minha ira contra meu próprio ser.

Abandonando minha vida habitual, cai na loucura do vinho e da noite, mas nada trazia conforto a minha dor. Um dia ao chegar em passos trôpegos ao meu salão, a fúria dos demônios apoderou-se de mim, não me reconhecia, e me deixando levar por esta possessão desatinada me pus a tentar refazer o estrago, passei a noite alternando momentos de alucinação em que caia as gargalhadas e de desespero tétrico em que sentia minha mente sendo rasgada, em meio a esse frenesi dei continuidade ao furor restaurador, ignorando o fato evidente de que aquilo estava agora muito longe de ser como foi anteriormente. Em minha febre doentia imaginava ver a forma se recompondo, peça a peça, a superfície perfeita nos seus mínimos detalhes, a felicidade enchendo novamente minha alma, isso até desfalecer exausto no chão frio do meu salão.

Ao acordar no dia seguinte e me deparar com aquela monstruosidade que havia criado novamente surgiu em mim a cólera da noite anterior, aquele arremedo que estava a me encarar não merecia nem uma lembrança em minha vida, levei mão a uma marreta e loucamente comecei a destruí-lo, queria acabar rápido evitando assim que aquela coisa hedionda ficasse para sempre queimada em minha memória e tomasse o lugar do que antes foi tão fabuloso.

Na minha sanha destruidora, cego pela raiva e pelo medo, acabei acertando um golpe no lugar errado, e tudo veio a baixo, me esmagando contra o chão e me obrigando a encarar aquela realidade medonha sem chance de fuga.

Acabei preso e nesta situação me encontro agora, escrevendo em um bloco de notas com um pedaço tosco de carvão, aguardando que a coisa se desintegre por completo e me liberte desse cárcere que eu ajudei a criar.


Micael Salton

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Chegando de seu trabalho, é uma quarta feira, ele odeia quartas feiras, sua casa vazia não é nenhum consolo, a noite fria insinua-se pela janela aberta, ao fechá-la um vislumbre da rua, aquela rua imunda com casas enegrecidas pela poluição, pode ver dentro de uma delas, lá está aquela coisa de novo, não é possível, imaginara ter acabado com aquela pestilência...

-Voltastes então maldito – ele pensa.

Coloca sua melhor roupa, é uma ocasião especial entendam, dessa vez não haverá retorno, ele precisa dar um fim nisso, pode sentir a insanidade da ira excessiva como um tumor tenebroso tomando conta de sua mente.
Desce as escadas decidido, seu terno negro resvalando na camisa impecável, atravessa o portão, a mente focada, primeiros passos na rua, nenhuma hesitação, cruza a esquina, seus punhos fechados, ignora o aceno habitual do segurança, ele que se foda hoje, ao chegar na soleira da porta sua boca é uma careta repuxada.

Não é fácil explicar, pensamentos de vingança brotam da humildade, você não vê ou ouve nada, seus sentimentos doentios, sua ira não quer morrer.
Sua mão encontra o ferrolho, o contato com o metal gelado não significa nada, a porta se abre, alguém segura seu braço.

- Diga-me o quão longe você quer ir?

-Você pode, você quer  e nunca irá perdoar.

Aquilo não importa, você condena sua própria vida, sua ira não quer morrer e somente isso te mantém vivo.  
O corredor leva à sala, e a sala esta arruinada, quantas vezes já esteve ali? Quantas vezes já destruiu tudo que ali havia, quantas vezes ainda vai repetir isso? Talvez quando sua própria mente ruir esta casa abominável também caia. Na velha poltrona está sentada aquela coisa, seu sorriso debochado é como um desafio – mais uma vez amigão?

Você golpeia seu ódio com uma pedra, como um bate-estaca em seu espírito, você caçou, perseguiu e amaldiçoou ele, isso não é o bastante? O sorriso some a cada ferimento, dessa vez mais do que na última, menos do que na próxima. E não é essa a grande desolação, saber que nunca terá um fim?
Por hoje está feito, volta para sua casa e prepara sua janta, sua comida é gelada esta noite, e assim é muito melhor.

Micael Salton