segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


Já era quase meia noite quando o piloto do avião anunciou o procedimento de pouso. Pegara o voo noturno a pedido de meu amigo. Explicara-me que assim seria melhor, pois haveria poucos nativos nas ruas e nosso caminho até sua casa não contaria com nenhum assombro prematuro. Não pude compreender o que ele queria dizer com isso, mas devido a sua excêntrica e imprevisível natureza decidi apenas aquiescer. Ao descer a escada de acesso ao solo uma incrível sensação de estranheza invadiu meu ser causando-me grande desagrado. Permaneci imóvel por alguns instantes até o passageiro logo atrás rosnar algo incompreensível e tirar-me do transe aterrador. Foi somente então que percebi a quantidade estranhamente pequena de pessoas que o voo transportava, contando comigo havia apenas mais dez. Sendo o primeiro a entrar não tinha tido a chance de analisar calmamente nenhum dos tripulantes, mas agora que eles passavam apressadamente por mim podia ver suas expressões de preocupação. Permaneci parado junto ao lado da escada enquanto todos os nove desceram e tudo que eu podia inferir ao contemplá-los era que todos estavam profundamente desagradados por saírem da aeronave. Alguns tinham o semblante tão carregado e retorcido que eu poderia jurar que estavam à beira de um colapso nervoso. Lutei contra o sentimento ameaçador e convenci-me que tudo era fruto da angustia natural que eu sentia toda vez que viajava de avião. Ainda assim caminhei lentamente esperando que todos fossem embora e eu não precisasse encarar novamente suas horríveis expressões de terror.

Após recolher minha bagagem avistei meu amigo que me acenou com grande entusiasmo. Dentro de seu carro decidi que não era o momento para questioná-lo sobre qualquer coisa, ainda estava vagamente abalado pela horrível sensação e agradeci internamente por ele também não ter tocado em nenhum assunto que me causasse espanto. Após uma longa e relaxante conversa no caminho de 20km até sua casa já havia expulsado a lembrança do aeroporto para algum canto escuro e inacessível da minha mente. Passamos boa parte da noite relembrando as peripécias de juventude e a vida que levávamos antes da minha partida há tantos anos atrás. Já era quase três horas quando ele disse que tudo havia mudado muito desde esses tempos passados. Nesse ponto passou a falar com voz arrastada e com uma melancolia indescritível, algo que causou-me grande tristeza. Pensei em abraçá-lo mas não sabia se após tantos anos ainda era possível algum gesto desse nível. Decidi permanecer sentado e senti enorme vergonha ao desviar meu olhar de seus olhos úmidos e injetados. Podia respirar a tensão, era como se o próprio ar tivesse adquirido consistência sólida, queimava meus pulmões a cada inspiração, e eu podia ver as palavras que em breve iriam explodir para fora de seu corpo. Permanecemos em profundo e aterrador silêncio por cerca de dez minutos, até ele falar.

-Aqui estamos todos mortos, você entende isso? – Perguntou-me subitamente com os olhos absurdamente abertos e a boca em um esgar inumano.

-Não seja tolo, você está aqui respirando em minha frente – respondi com um leve ar cômico devido a surpresa, não esperava que essa fosse sua afirmação, por todos os deuses isso era justamente o extremo oposto do que eu esperava.

-Eu entendo o que você está pensando, mas existem muitas formas de morrer, a morte não é a não-vida, e aqui é justamente o que temos. O que você deixou para trás é a completa não-vida, somos mortos-vivos se assim você o preferir.

A compreensão chegou junto com um vago arrependimento por ter tirado alguma graça de sua afirmação. Embora não pudesse entender o motivo de meu amigo estar-me falando essas coisas podia sim imaginar claramente a situação odiosa que ele me descrevia. Sentado em sua poltrona de couro vermelho ele agora fitava fixamente o assoalho de madeira escura. Eu agarrava inconscientemente os braços da minha poltrona esperando a continuação do relato pavoroso.

- Entenda, eu não poderia pedir para fazermos o trajeto até minha casa à luz do dia. Você certamente iria enxergar as pessoas, e sua sensibilidade iria revelar a verdade antes que eu pudesse prepará-lo para tanto. Espero até mesmo convencê-lo a partir antes da luz do dia, para não ter de presenciar objetivamente o espetáculo grotesco da realidade desse lugar.

- O que poderia ser tão medonho para impressionar-me além de minha tolerância? Bem sabes de minha própria realidade monstruosa e de tudo que tive que abrir mão para estar aqui agora. – Enfim contou-me tudo que podia, e após o fim de seu relato eu estaria sim totalmente convencido a partir sem submeter-me a tortura hedionda da compreensão real. Após sua última declaração eu fugiria em completo desespero e abandonaria para sempre aquele lugar, desejando com todas as minhas forças para esquecer toda essa experiência e amaldiçoando meu amigo por ter me revelado estas monstruosas verdades.

-Veja, tudo que você sabe agora, é apenas o que sabíamos enquanto jovens, você foi embora e eu continuei atravessando as diversas portas do entendimento, caminhando a largos passos para o que eu pensava ser o objetivo máximo. O espaço sem paredes que iria mostrar-me a verdade da nossa realidade. Acredite, não posso precisar em que momento tornei-me um deles, um dos mortos-vivos, creio ser um processo gradual, inerente a toda esta condição deplorável, mas o que importa é que iria acontecer com você também, ninguém está livre deste destino. Não são as tragédias que nos transformam, ironicamente nunca é a mudança a assassina da vida. O cotidiano desprezível, é este o tenebroso algoz de nossa existência, com o passar do tempo ele nos devora imperceptivelmente, até nos tornarmos insensíveis a tudo. Não passamos de escravos de nossa realidade, escravos que sequer se sentem prisioneiros, cativos que se imaginam livres, trocamos os grilhões pelos objetos e o sofrimento pela ilusão. Subordinamos nosso ser a qualquer falsidade externa que prometa um alívio futuro. O que é a vida se a realidade em que ela se dá é falsa? Se a própria realidade aprisiona como pode existir a liberdade? Estaria ela na loucura? Ou na morte?

Um morto-vivo  é aquele que sequer sabe por que faz as coisas. Assim somos nós, essa é a vida que você deixou e para a qual você quis voltar. Se existe uma centelha de uma razão pura seria ela forte o bastante para atravessar o simulacro de realidade na qual todo meu ser fora criado? Você meu amigo, não foi longe o suficiente para romper as barreiras de sua própria mente e assim não permitiu que a doença do mundo contaminasse seu ser, para isso pagou com sua própria vida e essa é a grande e última ironia, você é o homem mais vivo desse mundo, mas está na verdade morto.