segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


Já era quase meia noite quando o piloto do avião anunciou o procedimento de pouso. Pegara o voo noturno a pedido de meu amigo. Explicara-me que assim seria melhor, pois haveria poucos nativos nas ruas e nosso caminho até sua casa não contaria com nenhum assombro prematuro. Não pude compreender o que ele queria dizer com isso, mas devido a sua excêntrica e imprevisível natureza decidi apenas aquiescer. Ao descer a escada de acesso ao solo uma incrível sensação de estranheza invadiu meu ser causando-me grande desagrado. Permaneci imóvel por alguns instantes até o passageiro logo atrás rosnar algo incompreensível e tirar-me do transe aterrador. Foi somente então que percebi a quantidade estranhamente pequena de pessoas que o voo transportava, contando comigo havia apenas mais dez. Sendo o primeiro a entrar não tinha tido a chance de analisar calmamente nenhum dos tripulantes, mas agora que eles passavam apressadamente por mim podia ver suas expressões de preocupação. Permaneci parado junto ao lado da escada enquanto todos os nove desceram e tudo que eu podia inferir ao contemplá-los era que todos estavam profundamente desagradados por saírem da aeronave. Alguns tinham o semblante tão carregado e retorcido que eu poderia jurar que estavam à beira de um colapso nervoso. Lutei contra o sentimento ameaçador e convenci-me que tudo era fruto da angustia natural que eu sentia toda vez que viajava de avião. Ainda assim caminhei lentamente esperando que todos fossem embora e eu não precisasse encarar novamente suas horríveis expressões de terror.

Após recolher minha bagagem avistei meu amigo que me acenou com grande entusiasmo. Dentro de seu carro decidi que não era o momento para questioná-lo sobre qualquer coisa, ainda estava vagamente abalado pela horrível sensação e agradeci internamente por ele também não ter tocado em nenhum assunto que me causasse espanto. Após uma longa e relaxante conversa no caminho de 20km até sua casa já havia expulsado a lembrança do aeroporto para algum canto escuro e inacessível da minha mente. Passamos boa parte da noite relembrando as peripécias de juventude e a vida que levávamos antes da minha partida há tantos anos atrás. Já era quase três horas quando ele disse que tudo havia mudado muito desde esses tempos passados. Nesse ponto passou a falar com voz arrastada e com uma melancolia indescritível, algo que causou-me grande tristeza. Pensei em abraçá-lo mas não sabia se após tantos anos ainda era possível algum gesto desse nível. Decidi permanecer sentado e senti enorme vergonha ao desviar meu olhar de seus olhos úmidos e injetados. Podia respirar a tensão, era como se o próprio ar tivesse adquirido consistência sólida, queimava meus pulmões a cada inspiração, e eu podia ver as palavras que em breve iriam explodir para fora de seu corpo. Permanecemos em profundo e aterrador silêncio por cerca de dez minutos, até ele falar.

-Aqui estamos todos mortos, você entende isso? – Perguntou-me subitamente com os olhos absurdamente abertos e a boca em um esgar inumano.

-Não seja tolo, você está aqui respirando em minha frente – respondi com um leve ar cômico devido a surpresa, não esperava que essa fosse sua afirmação, por todos os deuses isso era justamente o extremo oposto do que eu esperava.

-Eu entendo o que você está pensando, mas existem muitas formas de morrer, a morte não é a não-vida, e aqui é justamente o que temos. O que você deixou para trás é a completa não-vida, somos mortos-vivos se assim você o preferir.

A compreensão chegou junto com um vago arrependimento por ter tirado alguma graça de sua afirmação. Embora não pudesse entender o motivo de meu amigo estar-me falando essas coisas podia sim imaginar claramente a situação odiosa que ele me descrevia. Sentado em sua poltrona de couro vermelho ele agora fitava fixamente o assoalho de madeira escura. Eu agarrava inconscientemente os braços da minha poltrona esperando a continuação do relato pavoroso.

- Entenda, eu não poderia pedir para fazermos o trajeto até minha casa à luz do dia. Você certamente iria enxergar as pessoas, e sua sensibilidade iria revelar a verdade antes que eu pudesse prepará-lo para tanto. Espero até mesmo convencê-lo a partir antes da luz do dia, para não ter de presenciar objetivamente o espetáculo grotesco da realidade desse lugar.

- O que poderia ser tão medonho para impressionar-me além de minha tolerância? Bem sabes de minha própria realidade monstruosa e de tudo que tive que abrir mão para estar aqui agora. – Enfim contou-me tudo que podia, e após o fim de seu relato eu estaria sim totalmente convencido a partir sem submeter-me a tortura hedionda da compreensão real. Após sua última declaração eu fugiria em completo desespero e abandonaria para sempre aquele lugar, desejando com todas as minhas forças para esquecer toda essa experiência e amaldiçoando meu amigo por ter me revelado estas monstruosas verdades.

-Veja, tudo que você sabe agora, é apenas o que sabíamos enquanto jovens, você foi embora e eu continuei atravessando as diversas portas do entendimento, caminhando a largos passos para o que eu pensava ser o objetivo máximo. O espaço sem paredes que iria mostrar-me a verdade da nossa realidade. Acredite, não posso precisar em que momento tornei-me um deles, um dos mortos-vivos, creio ser um processo gradual, inerente a toda esta condição deplorável, mas o que importa é que iria acontecer com você também, ninguém está livre deste destino. Não são as tragédias que nos transformam, ironicamente nunca é a mudança a assassina da vida. O cotidiano desprezível, é este o tenebroso algoz de nossa existência, com o passar do tempo ele nos devora imperceptivelmente, até nos tornarmos insensíveis a tudo. Não passamos de escravos de nossa realidade, escravos que sequer se sentem prisioneiros, cativos que se imaginam livres, trocamos os grilhões pelos objetos e o sofrimento pela ilusão. Subordinamos nosso ser a qualquer falsidade externa que prometa um alívio futuro. O que é a vida se a realidade em que ela se dá é falsa? Se a própria realidade aprisiona como pode existir a liberdade? Estaria ela na loucura? Ou na morte?

Um morto-vivo  é aquele que sequer sabe por que faz as coisas. Assim somos nós, essa é a vida que você deixou e para a qual você quis voltar. Se existe uma centelha de uma razão pura seria ela forte o bastante para atravessar o simulacro de realidade na qual todo meu ser fora criado? Você meu amigo, não foi longe o suficiente para romper as barreiras de sua própria mente e assim não permitiu que a doença do mundo contaminasse seu ser, para isso pagou com sua própria vida e essa é a grande e última ironia, você é o homem mais vivo desse mundo, mas está na verdade morto.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011


E todos dizem que a magia está morta. Rebaixada aos livros infantis e outras obras pós-modernas de qualidade duvidosa. O que vim a descobrir mudou para sempre minha crença nesta realidade. Não só convenci-me da existência de forças mágicas operando além da capacidade de compreensão, como com grande pesar percebi que já estava sobre seu medonho domínio. A revelação não chegou de surpresa, e entendam, acredito que muitos nunca conseguirão o entendimento deste fato.

A alvorada da compreensão inicia-se no dia em que por razões as quais não devo revelar,  obtive inesperadamente uma espécie de valioso baú. Não em seu sentido antigo, de madeira com seus reforços de aço. Mas no sentido simbólico de seu conteúdo. E o que ele continha era o mais precioso dos tesouros. Não para mim, entendam. Foram os que estavam comigo no momento da abertura que mostraram-se atônitos pelo conteúdo encantador. Ao me deparar com suas reações identifiquei aquelas pequenas unidades como poderosos talismãs. Deduzi que o possuidor não era afetado pelos efeitos surpreendentes dos talismãs, pois ao vê-los não tive nenhuma reação digna de nota. Pelo contrário, inicialmente uma leve decepção por encontrar pequenas coisas tão despropositadas e sem nenhum valor. Somente em seguida pude apreciar de fato seu poder oculto. Aqueles a minha volta passaram a olhar-me com total admiração imbecil. Manipulavam os pequenos talismãs e passavam uns para os outros, cochichavam e apontavam, causando-me certo constrangimento. Finalmente irritado com a situação mandei que os guardassem de volta no baú e se retirassem. Saíram todos, porém ao contrário do que esperava despediram-se com muita educação, a despeito de minha grossura evidente, fato o qual imputei ao poder controlador agora em ascensão.

Naquela noite recebi inúmeras ligações de pessoas desprezíveis com as quais não mantinha nenhum contato há algum tempo. Todas enjoativamente prestativas e bem educadas. Eu pelo contrário usava de toda minha grossura e as dispensava. Ao que parece o poder extrapolava o mero contato físico ou mesmo visual. O simples fato de possuir o que possuía já era o bastante para colocar em encantamento insensato outras pessoas as quais um dia fui relacionado. Naquela noite dormi com sincera insatisfação e pensando em livrar-me daquele fardo que agora causava-me tanta amolação. Com o amanhecer porém minha idéia mudara radicalmente, o maligno entendimento mostrou-me as perspectivas de possuir um objeto tão poderoso. Decidido a testar a real dimensão de sua capacidade iniciei uma bateria de experiências. O resultado é previsível, pessoas francamente controladas por aquele poder místico e sem explicação. Em algum tempo um sentimento megalomaníaco emergiu irrefreável e passei a ousar ainda mais. Controlava pessoas como fantoches que sorriam e apreciavam aquela privação hedionda de sua liberdade. Todos pareciam adorar a perversidade e a cada momento louvavam ainda mais minha presença opressora. Voltei para minha casa satisfeito por ter sido o carrasco depravado de tantas almas ignorantes. Minha sanidade retornava em curtos intervalos nos quais me pegava idolatrando os talismãs, manipulando-os e pensando em todo seu poder controlador. Em como era importante agora que os possuía. Minha suposição inicial de estar protegido de seus efeitos mostrara-se completamente errada. A ânsia apreciativa levou-me a desejar possuir mais deles. Alguma intuição inexplicável dizia-me que o poder aumentaria, tornando-me ainda mais importante, aplacando totalmente as inseguranças e colocando todos à minha vontade. A mente arruinada pelo feitiço grotesco era um ambiente suscetível para mais patologias. E logo a paranóia instalou-se; afastei-me de todos, temendo ser privado de meus valiosos. Seguindo a lógica doentia acabei por cercar-me de pessoas enfeitiçadas. Sobre a magia alienadora elas não representavam nenhum perigo. Sua imbecilidade contemplativa me colocava como seu mestre e aqueles cativos não iriam imprimir nenhuma resistência as minhas ordens incoerentes.

Não demorou muito tempo para descobrir que não era o único a possuir os poderosos talismãs; ao que parece alguns os tinham em quantidade ainda maior. Precisava alcançá-los, os invejava e por isso aproximei-me desses “mestres” maiores. Não era como os serviçais, o feitiço apenas me atraia a possuí-los e não servir a seus possuidores. Já em estado desumano e totalmente cego pelo domínio místico consegui alçar-me ao nível considerável dos possuidores que antes invejava. Claro, não era o bastante, a simples existência de outros como eu imputava-me a antiga paranóia massacrante.

Vivi nessa existência egoísta acumulando mais e mais talismãs, vendo meu poder crescer e apreciando a ignorância generalizada. Servos e possuidores, todos servem ao talismã, não há liberdade em uma nação de escravos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011


Marchando por entre muralhas de escura rocha escarpada ainda não percebo a razão de tal esforço impossível. Apenas prossigo sentindo o ácido venenoso despejando seu fluxo incomparável de sofrimento. Logo farpas pungentes retalham desvairadamente a composição tão precária. Por vezes obrigado a ajoelhar no solo incandescente, apreciando o ardente amargor implacável, aferrando-se em desespero, arrastando a carga onerosa imposta por inominável força perversa. A subida última aproxima-se em fugaz manifestação desoladora, mantendo-me inconsciente do fardo insuportável conjunto a minha forma. O vento desconfortante fustiga o rosto sem face impedindo a compreensão da verdade irrefutável. A ascensão do espírito é interrompida nos primeiros metros. Não há vigor capaz de transcender o ângulo pilhérico do caminho adiante. Zombeteiras vozes preenchem o vazio com seus murmúrios incompreensíveis. A cólera é um impulso bem vindo e inteira a composição com seu destilado alienador, o licor pestilento é novamente lançado sem piedade e o fogo flui irrefreável incendiando cada fragmento ainda imaculado. Mãos e braços desempenham o papel dos já derrotados. A encosta parece alçar-se ainda mais angulosa e o esforço beira o impraticável. O vento atroz inverte sua direção e sons inesperados de amarras metálicas estalam nas rochas pontiagudas. Não há tempo para pensamentos. O topo está próximo e alguma potência atrai furiosamente para o abismo. A dor indizível não pode mais ser ignorada e a ira motivadora transforma-se em ruína pesarosa. Imobilizado, por fim, cedo ao engulho revelador e viro minha atenção para as profundezas abissais que permeiam a existência das vidas perdidas. Horror não é o bastante para descrever o sentimento medonho do entendimento inesperado. Aros metálicos inexoravelmente encravados em minha própria substância sustentam enormes correntes. A extremidade oposta de cada uma ampara um corpo humano. A opressão detestável vinha diretamente daqueles simulacros hediondos. Cascas vazias do que um dia fora a morada da existência, reduzidos a sórdidas armadilhas implantadas por algum destino depravado. A fúria reacendida bastou para transpor as últimas etapas da odiosa subida. Trataria agora de livrar-me daquelas monstruosidades desalmadas. Ao me aproximar das coisas humanas, primeiro percebi com assombro que estavam ligadas a minhas correntes por cadeados com fechaduras. Antes de pensar na chave libertadora tive a segunda revelação pavorosa. As criaturas que se passavam por pessoas estavam na verdade vivas. Passaram a implorar por sua soltura e seus apelos insensatos causaram-me inigualável desespero do qual não posso relembrar. Corri em frenesi desatinado até o limite do comprimento das amarras. O puxão de quando encontrei o fim de nossa distancia separadora foi ignorado por minha mente alucinada. Imerso em terror continuei arrastando minha carga diabólica que agora tentava se agarrar em pedras e arbustos retorcidos. Insanamente praguejava para que sumissem e me deixassem. As coisas gritavam de volta uma mistura de súplicas e ofensas despropositadas. Prossegui transpondo subidas e escarpas, definhando pouco a pouco, ignorando os pedidos e blasfemando a todos os deuses. Que destino cruel teria me colocado nesta situação, que criatura abominável e insensível teria interesse em onerar minha existência de forma tão sádica?

Imerso em minha ignorância insensata, cego pela raiva e alienado pelo remorso não ouvia o que eles me diziam. Não escutava seus pedidos de libertação, e não podia perceber a grande chave dourada que em meio a tudo isso balançava como um pêndulo presa a meu pescoço.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Para aqueles assim como eu, céticos com o mundo, para aqueles que acreditam que tudo não passa de um plexo de acontecimentos que resultam na existência, para esses contarei minha história, no fim espero convencê-los de que existe uma grande e essencial verdade impossível de ser ignorada.

Escrevo este relato em raros momentos nos quais posso alcançar consciência suficiente para tal, tais oportunidades tornam-se progressivamente mais inconstantes e os inúmeros remédios que compõe minha dieta diária parecem inócuos em amortecer meu terror. Em retrospectiva acredito que minha história deveria começar ambientada em uma noite de tormenta, o quadro macabro se completaria com algum mau agouro a tocar a sineta de minha enorme casa vitoriana, raios cortando o negrume de uma noite que só poderia pertencer a um tenebroso pesadelo, no fim em minha porta estaria uma figura medonha trazendo o próprio inferno em sua sombra. O que aconteceu de verdade não corresponde a nenhum estereótipo de contos de horror, e talvez essa seja sua cruel e avassaladora singularidade que plantou a semente da insanidade em minha mente.

Uma tarde ensolarada de outono, em minha casa suburbana tingida em tons de bege a combinar com outras casas da ordinária vizinhança de classe média. Era unicamente mais um dia indolente do qual eu apenas esperava o fim, apenas para repetir o processo no dia seguinte, perseguindo um desfecho ilusório que sequer era questionado. Ao ouvir alguém bater em minha porta não pude reprimir o desagrado por ser incomodado, quem ousaria trazer-me companhia e destruir minha solidão. Abri a porta e deparei-me com um trivial tipo executivo vestindo um genérico terno azul-marinho - por deus só pode ser algum religioso desprezível trazendo suas horrendas palavras de amor e salvação, se assim fosse iria enxotá-lo como a um cachorro vadio que cismasse em estragar o minúsculo cubículo de grama que era meu jardim. O que o tipo executivo ordinário falou provocou-me um misto de surpresa cômica e raiva antecipada, perguntou-me o que eu precisaria para ser feliz, petulante questionamento causa-me náuseas – foi minha resposta. Não abalado ele abriu sua maleta de couro falso, e lá estavam grossos maços de dinheiro, 1 milhão em notas de cem. Minha ira chegou a seu ápice, - que tipo de brincadeira doentia é essa? O sujeito alcançou-me uma folha digitada e não pude conter a risada ao ver que se tratava de um contrato, o que estava a ser vendido? Minha alma. Basta assinar, não sou o demônio, as flores não morrem ante minha presença, não trago a escuridão comigo, não existe um inferno para reivindicar algo que sequer está sob seu controle – sua expressão impassível. Só pode ser um louco, só pode ser uma grande piada criada por alguma insolente corporação, algo que a massa medíocre adoraria ver numa coletânea de vídeos, quem está disposto a vender sua alma? 15 segundos de filmagem ao custo de 1 milhão, uma pechincha para uma grande empresa. Foda-se, se esse infeliz me der a maleta ela será minha e ninguém pegará de volta. Certifiquei-me de que o dinheiro era real, assinei toscamente meu nome na folha de papel e levei mãos à maleta, praticamente arrancando-a das débeis mãos daquele ator fracassado, acreditei até mesmo poder ver a câmera escondida em uma van estacionada nas proximidades. Bati a porta e virei o dinheiro em minha mesa, contei cada maço para ter certeza do valor, estava tudo ali, 1 milhão em notas de cem.   

Com o passar dos dias aferrei-me a idéia de que fui parte de algum tipo de reality show bizarro e em breve esperava ver o grandioso anúncio de mais um programa explorando a banalidade da realidade como se alguém de fato se surpreendesse com ela. Inicialmente apenas guardei o dinheiro, o medo de que alguém tentasse tomá-lo de volta me fez guardá-lo antevendo alguma possível batalha judicial. Passadas algumas semanas senti-me seguro para começar a usá-lo, ainda que em pequena quantidade. No final de 1 mês minha razão já dava sinais de estar sendo desafiada, nenhum programa surgiu, eventualmente decidi pesquisar por rumores da existência de tal projeto, não encontrei nenhuma referência.
Dois meses após, sentia-me nitidamente incomodado, aquilo que antes parecia uma evidente piada era agora um insolúvel mistério que progressivamente tomava conta de meu dia, minhas buscas por uma resposta tornaram-se uma leve compulsão. Procurei na vizinhança por alguém que tenha recebido alguma estranha proposta nos últimos meses, nada descobri, apenas a desolada expressão de surpresa daquelas pessoas acostumadas e esperar o fim do dia, acostumadas a seguir rumo ao enganoso desfecho inquestionável, apáticas e incompreensíveis ante minha experiência surreal. O monstro estava crescendo, dia após dia podia senti-lo reivindicando  uma parte maior da minha existência, tomando minha alma pedaço por pedaço, eu um mero espectador observando minha vida sendo devorada pela terrível obsessão.
 
Nessa época era apenas o não entendimento que me assolava, esperava encontrar uma resposta e por isso mantinha algum controle. O pior ainda estava para acontecer, minha falha ao encontrar uma razão para tudo aquilo levou-me ao desespero da superstição, passei a considerar a verdade sobrenatural naquela experiência toda, neste momento deixei de tocar no dinheiro, havia gasto apenas 50 mil dos 1 milhão, e agora não podia sequer pensar em usar aquele dinheiro maldito, como se minha alma pudesse ainda ser salva. Guardei em um cofre que comprei e decidi que iria viver e tentar esquecer  tudo, esquecer o dinheiro e talvez assim me redimir, procurei por mais um precário desfecho, frágil como um castelo de cartas pois nunca se pode questioná-lo sem arruinar tudo, essa raquítica crença que move toda a existência, uma doente esperança forçada a reprimir a razão pelo algo ilusório.

Passei a usar remédios na tentativa de calar minha mente, tentei todas as possibilidades, no fim era impossível fugir, em minhas corridas pelo parque acreditava ver demônios prontos a me abordar e reclamar o que lhes era de direito, cada vão escuro criado pelas sombras deflagrava as mais odiosas fantasias em minha mente, afastei-me de qualquer convívio social desconfiando de todos a minha volta.

Havia reduzido minha vida a uma tenebrosa sensação de pavor irrefreável, passava o tempo em minha sala amaldiçoando o dia que aceitei o detestável dinheiro, olhava para o negro cofre que continha o motivo de minha ruína. A loucura estava instalada, o demônio sentado em minha mente, passei a desejar que aquele vulgar executivo viesse e levasse de vez minha alma, apenas para terminar com o sofrimento da espera. Passei a não sair de casa, minha razão ausentando-se cada vez mais, passava os dias sentindo nada além de medo, e apenas nos momentos de lucidez podia lembrar o motivo de meu assombro, grande parte do tempo encontrava-me unicamente tomado por um terror inominável, ausente de qualquer sentido objetivo, composto apenas de pura emoção tenebrosa de pavor, o medo em sua forma pura. Definhei até o ponto de ser encontrado semi morto por inanição, fui colocado em uma instituição médica, os malditos me salvaram para prender-me no inferno da minha condição, vejo que logo serei apenas um animal, minha alma foi verdadeiramente levada em um sentido muito além da própria verdade ou mentira de sua existência e a de deuses ou demônios. Se realmente havia um demônio a comprar minha alma e se realmente há uma alma para se vender é algo que não tem importância alguma, a grande verdade é a verdade como ela se apresenta;  vendi minha alma e por isso estou pagando o preço.

segunda-feira, 30 de maio de 2011


“Da nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.”

-Está certo que desejas a verdade? – foi a pergunta.

-A verdade liberta, viver em dor é melhor a viver aprisionado – foi minha réplica.

Minha resposta deu início a viagem, em companhia de tão inconcebível guia fui levado em uma descida a compreensão, o trajeto para o primeiro nível não existiu num sentido espacial, ainda que tenha percebido certa mudança no interior de minha mente, ainda estávamos naquela clareira na floresta. Chegamos – disse meu guia. – Não é possível, estamos no mesmo lugar, as árvores continuam árvores! A floresta toda está aqui, nem sequer saímos do lugar!

- Não percebe? Este nível é a soma de tudo, compreenda, estamos em uma descida, aqui você sente, pensa e lembra. Aqui um arbusto é um arbusto, e o cheiro da floresta é apenas o cheiro da floresta.

-Irritar-me é sua função, maldito? Essas palavras me são vazias, de que adianta ter-lhe chamado se ia apenas mostrar-me a realidade enfadonha a qual estou acostumado?

-Perceber esta realidade é necessário para apreciar nossa jornada, deves entender o fim para compreender o princípio e ao princípio chegaremos em breve, nossa descida não é longa mas no fim você irá se arrepender, ao menos tente entender e assim somente talvez irá manter sua sanidade.

Tentando entender tais nebulosos enigmas coloquei-me em caminhada,a selva ao meu redor; podia de fato cheirá-la, podia de fato vê-la, senti-la tocando minha pele. Além de tudo, podia pensá-la, este é um arbusto espinhoso, está é uma flor vermelha. Indo mais além, podia lembrá-la, esta flor é igual a que tenho em minha sala. Mais longe podia compreender-me moralmente nesta floresta, não irei arrancar esta bela planta ainda que sinta vontade.

- Sinto que está pronto para prosseguirmos, desçamos, pois, ao próximo nível, ficará surpreso com o que irá encontrar, prepare-se, junte sua coragem e me siga.

Andamos na selva por mais alguns minutos e meu guia parou repentinamente, é aqui, exclamou, e em seguida abriu um alçapão no próprio chão da floresta, mal pude acreditar no que via, uma escada em espiral descia por aquela entrada surreal. Descemos pela escada, ao redor apenas escuridão, eventualmente formas incompreensíveis cruzavam subitamente nosso caminho em meio as trevas, subiam para a floresta que era sua única saída. Continuamos descendo naquele cenário monótono e desolador por horas, a escada em hélice estendendo-se infinitamente para baixo, para a escuridão que guardava o próximo nível. A exceção das eventuais aparições que cruzavam nosso caminho, o cenário era sempre o mesmo, os degraus perfeitos para uma passada rítmica, o escuro profundo ao nosso redor, o tempo de certa forma pára quando não existem mudanças a serem percebidas, imaginava a quanto tempo estaríamos naquela escadaria? Horas, dias? Não sentia cansaço nem ao menos sentia meus músculos trabalhando, percebi com assombro em que realidade insensata havia me colocado, tendo estes pensamentos senti o primeiro medo florescendo em minha alma desde o começo da jornada, mal podia imaginar que aquele mal estar estava muito longe do real desespero que me aguardava. Como se tendo consciência de meus pensamentos meu guia parou repentinamente quase me fazendo trombar com sua estranha forma, encostar-se àquele ser era meu último desejo, já era demais sequer saber de sua existência. Em sua frente uma porta se abriu, mostrando-nos o segundo nível.

Ao entrarmos naquele lugar medonho, o sentimento de opressão foi instantâneo e terrivelmente devastador, sentia-me completamente sujo e culpado, como se houvesse chacinado friamente centenas de homens. De início mal pude me mover, tentava lidar com a desmedida culpa que estava massacrando-me, nunca imaginei sentir tamanho mal estar e preferia agüentar torturas físicas quaisquer a enfrentar tal sentimento julgador. Suportei a sensação de peso colossal esmagando minha consciência até meu guia jogar um pano preto sobre meu corpo, possuía apenas dois furos para meus olhos, como uma fantasia infantil de fantasma, imediatamente senti o alívio milagroso, cai de joelhos e pude respirar novamente. Conforme recuperava o autocontrole pude olhá-lo melhor, aparentemente ele não era afetado pelo mal daquele lugar, criatura medonha e insensível, não poderia ser diferente.

Em seguida coloquei-me de pé e somente neste momento tive consciência que não estávamos sozinhos, uma criatura estupendamente grande postava-se no meio do que agora eu reconhecia como uma espécie de amplo calabouço. O terrível ser carregava um grotesco machado em uma das mãos e um igualmente imenso livro de ferro na outra, em um de seus lados um imenso baú e no outro um alçapão aberto. Logo percebi a medonha dinâmica daquele lugar; de outra porta no fim do calabouço saiam as aparições seguindo direto ao encontro da temível criatura com o machado, pude entender que as coisas desejavam subir pela escada em espiral, assim como entendi que aquele terrível sentimento que antes sentira emanava daquele monstro e que agora, escondido por minha tosca fantasia de fantasma, ele não podia colocar seus olhos julgadores em meu espírito. 

A realidade do que acontecia à maior parte dos que iam de encontro ao monstro é nefasta, o censor consultava algo em seu imenso livro de ferro e na maioria das vezes destroçava aquilo que pleiteava passagem com apenas um golpe, outras vezes abria seu baú e de lá tirava as mais variadas fantasias, algo que seria cômico se não fosse feito por tão desoladora monstruosidade, após vestir a seu gosto, permitia a passagem. Aquilo tudo me parecia extremamente incompreensível, na verdade não podia sequer entender o que eram aquelas coisas que saiam pela porta, minha mente via vagas formas humanóides mas eu podia sentir que se tratavam de algo mais, podia até mesmo senti-las como sua essência, mas incapaz de interpretá-las com minha razão.

Hipnotizado por aquele espetáculo grotesco continuei imóvel apenas assistindo a tudo acontecer. Vi o que minha mente entendeu como uma linda mulher nua dirigindo-se ao monstro, porém senti o que realmente era, uma luxuriosa sensação de sexo e violência em uma mistura abominavelmente atrativa, deus, algo assim faria de qualquer homem um louco desmedido. O resultado não poderia ser diferente; a forma feminina imediatamente fatiada em dois. Agora uma criatura encapuzada saía pela porta, esta diferente de todas que vi antes, foi meu segundo impulso de medo, dessa vez não medo, mas pânico, pude ver o próprio monstro se retraindo, maldição, se aquele titã podia sentir receio aquela coisa tenebrosa deveria ser muito perigosa. Percebi que estava rezando para a criatura fazer logo seu trabalho e banir aquele demônio, o que foi feito mudou o padrão até então, vi que ele foi incapaz de atacar seu algoz, em um rápido movimento colocou-o dentro do alçapão que se abria ao seu lado.

-Ele o mandou de volta ao nível inferior – falou pela primeira vez naquele lugar meu guia. – veja se até mesmo este gigante não pode eliminar aquilo, você quer realmente ir para o lugar que o originou?

Com a ausência do ser meu medo havia esvaecido e minha tola coragem retornara, sim eu iria até o fim, esta fora minha escolha antes e agora não havia retorno. O guia iniciou a caminhada até a porta de onde saiam os que seriam julgados e antes de a cruzarmos pude ver mais uma singularidade, algo já fantasiado cruzou o calabouço, surpreso fiquei ao perceber que o fantasiado passava direto pelo monstro, não pude apreciar por muito tempo a situação, em seguida já cruzávamos a fronteira para o verdadeiro inferno.

Dessa vez não havia escada, desabei nas trevas e continuei caindo até perder a consciência. Acordei em um mundo desconexo, qualquer razão ou ordem passou longe de conhecer aquela terra. Acima de tudo, aquela realidade era constituída de sentimento materializado, tal como sentira ao ver as criaturas do nível anterior, agora a própria substância da realidade possuía um sentimento como essência, uma emoção dentro de uma emoção. O pior era a completa ausência de freios, nada continha aquele turbilhão de sensações, estava no mundo dos extremos, aquela sim era a liberdade em sua essência, e que hediondo inferno era esse. Sentia-me violado por todo tipo de sentimento primitivo, compreendi que só podia existir naquele lugar pois ainda possuía uma mente que desesperadamente tentava filtrar o que eu sentia, ainda assim a sensação era medonha. Meu guia havia sumido e decidi explorar aquele estranho universo enquanto ainda podia manter meu eu parcialmente isolado de sua ofensiva. Vaguei por aquela terra devastada, vendo e sentindo absurdos, indo da alegria incapacitante ao desespero total, minha mente tornara-se um campo de batalha, podia sentir o dique se rompendo, prestes a permitir que aquelas sensações me invadissem por completo transformando-me em mais um de seus animalescos habitantes.

Tal como os sentimentos, o cenário variava sem nenhuma lógica, em determinado momento me encontrava vagando por um deserto infinito, sentindo as urgências mais básicas da sobrevivência, disposto a qualquer ação para conseguir meios de sobreviver, a sede a fome e a necessidade por abrigo, de certa forma sabia que não poderia morrer materialmente pois sequer existia concretamente naquela realidade, ainda assim minha mente absorta por tão avassaladoras necessidades ignorava minha razão, e prosseguia em suas conjecturas desesperadas para capturar mantimentos. E tão repentinamente como começava, era impelido a outra sensação e com este movimento o cenário também variava; agora estava na entrada de uma enorme caverna, o medo do desconhecido preenchia meu ser, sabia que deveria entrar, mas relutava e assim criava racionalizações do porquê não deveria prosseguir, assim fiquei por um bom tempo, lutando com meu medo primordial, até finalmente adentrar nas trevas e ai ser lançado a outro cenário e sentimento randômico. Agora uma cidade, podia perceber a escalada da complexidade das emoções, embora ficasse claro a importância dos sentimentos primordiais, podia entender novas e intrincadas interações surgindo e tal como elas o ambiente de fato tornava-se mais complexo. Buscava por algum fim na cidade que como num cruel pesadelo ia aumentando cada vez mais, o que antes poderia ser uma pequena cidade suburbana era agora uma enorme metrópole tornando minha busca algo inconcebível, nesse cenário o sentimento de tempo passando era o cerne do sofrimento, tendo tido a experiência com sensações basais e por mais desoladoras elas fossem, agora havia entrado num inferno de outro nível, percebia que a complexidade tornava tudo pior, era como adicionar escalas e mais escalas de sofrimento ao invés de existir apenas um plano de dor. A cidade crescia e crescia e as possibilidades de achar o que procurava diminuíam a cada momento, a antecipação do fracasso destruía minha vontade mas a idéia de permanecer inerte em tão perversa existência sem nenhum objetivo senão a medonha sensação de imobilizada derrota era totalmente inconcebível, permaneceria naquela horrível busca até o fim e apenas para evitar sentir pior sofrimento. Por fim acabei em interações dentro dessa que entendi como a interação última, a busca da verdade pela verdade, acabava descobrindo realidades sobre meu ser ao abrir portas aleatórias, ao andar em ruas e ter percepções espontâneas, mas no fim sempre me sentia correndo do tempo que estava a um calcanhar de me alcançar e aumentava sua velocidade me obrigando a fugir ainda mais.

Tive o que se poderia dizer de um tempo de uma vida nessa existência insana até certo dia inesperadamente encontrar o que tanto buscava, soube imediatamente que havia cumprido minha antiga missão, assim como soube que naquele mesmo instante criava-se para mim uma nova busca, mantendo assim a sensação de urgência contra o tempo inalterada. Havia em fim encontrado a grande resposta; a verdade é a busca e não o objetivo, tão logo apodera-se do objetivo uma nova busca torna-se a verdade. A procura deve sempre existir e a desolação que ela causa nunca poderá ser suprimida.

Não havia mais sentido em prosseguir naquele mundo, tendo a compreensão queria de fato vive-la em uma realidade material em que ao menos continha sentimentos opacos e não materializados como naquele mundo nefasto. Chamei por meu guia, que apareceu como se houvéssemos estado juntos todo este tempo.

-Estou pronto para voltar, você estava certo e a verdade sequer é realmente uma verdade, não estou mais livre por tê-la entendido, na verdade estou apenas mais ciente da real falta de liberdade da condição humana, agora me leve de volta.

As últimas palavras de me guia enfim me revelaram a mais importante e medonha realidade.

-Não entendeu não é mesmo? Essa é sua mente, nenhum homem deve conhecer assim as profundezas de seu próprio ser, agora você é apenas uma doença emocional, saber o que você sabe tornou-o uma verdade perigosa demais para sua mente consciente. O guardião do segundo nível jamais permitirá sua passagem, irá jogá-lo pelo alçapão de volta a este mundo todas as vezes que tentar passar. Nem uma fantasia poderá mascarar seu perigo, entenda, você teve uma vida para entender, ninguém pode suportar o entendimento total de uma vez só.

A realidade é simples, minha busca pela verdade aprisionou-me dentro de minha própria mente.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A Zona Turva

Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras da insanidade. De fato estranhas coisas aconteceram e lembro-me bem daquela insólita noite em que fazia meu vigésimo terceiro ano neste mundo.  Podia ouvir o rumor abafado da festa que ocorria além da única entrada que havia para meu escritório, uma alta porta de feitio raro e bem trabalhada por, um bom artista. Havia deitado em minha ótima poltrona de exímio couro importado, pois sucumbi ao cansaço provocado pela preparação de tão singular festa; 300 convidados, em sua maior parte compostos por ilustres indivíduos, vindo dos mais remotos cantões de meu país apenas para prestigiar meu evento. Não que não fosse um bom anfitrião, mas o aconchego de meu excelente escritório, com sua lareira adornada, e seus móveis antigos de boa madeira de ébano trazida de exóticos e longínquos países, me causava uma irresistível atração. Abri uma garrafa de notável vinho rubro, o qual bebi intensamente, levando minha exausta mente a beira do entorpecimento total, neste estado de semi-consciência foi quando arrebatou-me a experiência mais surreal que já tinha tido em toda minha existência, acredito que muito poucos dos que já andaram sobre este planeta tenham passado por semelhante vivência e menos ainda tenham sofrido tamanho desespero inexplicável ao qual fui impelido. Tinha entrado nesta misteriosa condição que é a zona turva entre o desperto e o começo do sono, um momento tão singularmente fantástico que nunca pode ser definido por limites, afinal, ninguém conhece sua divisa. Inúmeras vezes em outras noites ao estar cruzando a fronteira do sono acabava por acordar de sobressalto com o coração acelerado, havia ouvido há muito tempo que isso ocorria como uma interpretação errônea do cérebro que ao perceber a consciência retirando-se confundia esta ausência com a morte do ser, acionando assim um mecanismo de emergência e por isso o despertar alarmado. Não tenho certeza se acredito nesta teoria que coloca o cérebro numa condição de ser interpretativo por ele próprio, ainda assim o que me ocorreu nesta infame noite foi longe de ser este habitual.  Acabei preso na zona turva por um tempo que poderia muito bem ser eterno, não cruzava seu extremo, mas também não podia despertar, não bastasse o horror por si de estar encarcerado nesta condição, visões e alucinações começaram a agredir meu já aterrorizado ego. Consciente de estar em meu luxuoso escritório, a poucos metros de meus 300 ilustres convidados tomando seus preciosos licores, pouco podia fazer para repelir a realidade extra que meus olhos e meu corpo inteiro estavam começando a sentir, nesse momento de extremo horror sentia-me como rasgado em dois, vivendo duas verdades em um mesmo lugar, o paradoxo era insuportável, a repugnante realidade extra que se apresentava começava a se aparentar tão verdadeira quanto a outra, conforme a distinção sumia, maior era o sentimento de atroz dualidade. A condição funesta ainda não está completamente descrita, o material objetivo da realidade intrusa era tão medonhamente perverso que pensar nele como mera fantasia já seria quase insuportável, senti-lo como verdade era o inferno tomando forma em meu faustoso escritório. Sim meu escritório, soberbo com seu mobiliário e livros de toda sorte, uma hora sendo isto, outra se transformando em uma desprezível saleta de compensado arruinado, o sublime e o odioso convivendo na mesma verdade. Como uma mente poderia suportar tamanho disparate? Nenhum intelecto foi feito para conceber esta aberração. O sonho, se é que assim posso chamá-lo, prosseguiu em sua horripilância, aprofundando ainda mais aquele inferno, agora podia sentir como se estivesse sozinho desde sempre, solitário não em minha elegante poltrona de couro, mas em uma cadeira ordinária que machucava meu corpo, o egrégio vinho que antes tomava era agora uma vulgar bebida dessas que só se vê em mãos de vagabundos. Que deus eu ofendi para merecer tão exemplar punição? Meu pavor era algo para o qual não se existe nome na terra, a descida àquele inferno continuou, agora podia ver grandes períodos de uma vida medonha, uma vida em total sofrimento e solidão, o perverso sonho agora incutia falsas lembranças em minha mente, construindo de fato um outro eu por cima de meu eu anterior, um eu composto apenas de desespero colossal que obliterava qualquer felicidade que havia no original. Por pequenos momentos podia voltar a realidade, ao meu exímio escritório, podia ouvir o riquíssimo baile acontecendo além de minha grande porta ornamentada, isso apenas para em seguida ser precipitado de volta ao abismo daquela ilusão doentia. Agora me era mostrado uma rotina pavorosa de um trabalho sem sentido, mais, a ignorância e a mediocridade afetando tudo e todos, não é possível eu pensava, justo eu, tão versado indivíduo, sempre cercado por entendedores de todo tipo, imerso em conhecimento, como pode este maligno sonho querer me igualar a condição de um parasita insensato? Um burro guiado por um sistema defeituoso, apaticamente sendo levado ao penhasco para ali dar cabo a uma vida repleta de sofrimento sem fim e vazia de qualquer sentido maior. Logo eu que acreditava no esplendor da condição humana, sim, de fato podia entender sua beleza, sentado em minha celestial poltrona de couro importado. Agora nesta alucinação aterradora me vejo como um mínimo pedaço de nada, fracassado e infeliz, rodeado por ruínas do que um dia foram boas idéias, numa existência que já era equivocada antes mesmo de ser existência. Foi demais, minha sanidade já em frangalhos, sabia que não poderia jamais escapar intocado daquela experiência infernal, ciente de que atingira o âmago do sofrimento, a compreensão total da dor, iria agora subir à realidade, não havia como ir mais fundo. Estava certo e ao mesmo tempo avassaladoramente errado, como previra, ao encontrar o cerne daquela provação hedionda iniciei meu retorno a realidade, o que vi entendam, foi imensuravelmente medonho, instantaneamente ao entendimento meu ego se partiu para sempre, e minha própria alma não foi capaz de suportar a verdade, perdi minha sanidade e minha própria noção de eu. Conforme sentia-me mais desperto, via com mais clareza as paredes de compensado embolorado que constituíam minha saleta, sentia com mais intensidade a dor provocada pela péssima cadeira em que me sentava, lembrava mais fortemente de minha evidente solidão naquela casa miserável, entendia mais profundamente a ausência de sentido em toda a existência, enfim acordara por completo, por todos os deuses, o inferno era a minha realidade.