segunda-feira, 30 de maio de 2011


“Da nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.”

-Está certo que desejas a verdade? – foi a pergunta.

-A verdade liberta, viver em dor é melhor a viver aprisionado – foi minha réplica.

Minha resposta deu início a viagem, em companhia de tão inconcebível guia fui levado em uma descida a compreensão, o trajeto para o primeiro nível não existiu num sentido espacial, ainda que tenha percebido certa mudança no interior de minha mente, ainda estávamos naquela clareira na floresta. Chegamos – disse meu guia. – Não é possível, estamos no mesmo lugar, as árvores continuam árvores! A floresta toda está aqui, nem sequer saímos do lugar!

- Não percebe? Este nível é a soma de tudo, compreenda, estamos em uma descida, aqui você sente, pensa e lembra. Aqui um arbusto é um arbusto, e o cheiro da floresta é apenas o cheiro da floresta.

-Irritar-me é sua função, maldito? Essas palavras me são vazias, de que adianta ter-lhe chamado se ia apenas mostrar-me a realidade enfadonha a qual estou acostumado?

-Perceber esta realidade é necessário para apreciar nossa jornada, deves entender o fim para compreender o princípio e ao princípio chegaremos em breve, nossa descida não é longa mas no fim você irá se arrepender, ao menos tente entender e assim somente talvez irá manter sua sanidade.

Tentando entender tais nebulosos enigmas coloquei-me em caminhada,a selva ao meu redor; podia de fato cheirá-la, podia de fato vê-la, senti-la tocando minha pele. Além de tudo, podia pensá-la, este é um arbusto espinhoso, está é uma flor vermelha. Indo mais além, podia lembrá-la, esta flor é igual a que tenho em minha sala. Mais longe podia compreender-me moralmente nesta floresta, não irei arrancar esta bela planta ainda que sinta vontade.

- Sinto que está pronto para prosseguirmos, desçamos, pois, ao próximo nível, ficará surpreso com o que irá encontrar, prepare-se, junte sua coragem e me siga.

Andamos na selva por mais alguns minutos e meu guia parou repentinamente, é aqui, exclamou, e em seguida abriu um alçapão no próprio chão da floresta, mal pude acreditar no que via, uma escada em espiral descia por aquela entrada surreal. Descemos pela escada, ao redor apenas escuridão, eventualmente formas incompreensíveis cruzavam subitamente nosso caminho em meio as trevas, subiam para a floresta que era sua única saída. Continuamos descendo naquele cenário monótono e desolador por horas, a escada em hélice estendendo-se infinitamente para baixo, para a escuridão que guardava o próximo nível. A exceção das eventuais aparições que cruzavam nosso caminho, o cenário era sempre o mesmo, os degraus perfeitos para uma passada rítmica, o escuro profundo ao nosso redor, o tempo de certa forma pára quando não existem mudanças a serem percebidas, imaginava a quanto tempo estaríamos naquela escadaria? Horas, dias? Não sentia cansaço nem ao menos sentia meus músculos trabalhando, percebi com assombro em que realidade insensata havia me colocado, tendo estes pensamentos senti o primeiro medo florescendo em minha alma desde o começo da jornada, mal podia imaginar que aquele mal estar estava muito longe do real desespero que me aguardava. Como se tendo consciência de meus pensamentos meu guia parou repentinamente quase me fazendo trombar com sua estranha forma, encostar-se àquele ser era meu último desejo, já era demais sequer saber de sua existência. Em sua frente uma porta se abriu, mostrando-nos o segundo nível.

Ao entrarmos naquele lugar medonho, o sentimento de opressão foi instantâneo e terrivelmente devastador, sentia-me completamente sujo e culpado, como se houvesse chacinado friamente centenas de homens. De início mal pude me mover, tentava lidar com a desmedida culpa que estava massacrando-me, nunca imaginei sentir tamanho mal estar e preferia agüentar torturas físicas quaisquer a enfrentar tal sentimento julgador. Suportei a sensação de peso colossal esmagando minha consciência até meu guia jogar um pano preto sobre meu corpo, possuía apenas dois furos para meus olhos, como uma fantasia infantil de fantasma, imediatamente senti o alívio milagroso, cai de joelhos e pude respirar novamente. Conforme recuperava o autocontrole pude olhá-lo melhor, aparentemente ele não era afetado pelo mal daquele lugar, criatura medonha e insensível, não poderia ser diferente.

Em seguida coloquei-me de pé e somente neste momento tive consciência que não estávamos sozinhos, uma criatura estupendamente grande postava-se no meio do que agora eu reconhecia como uma espécie de amplo calabouço. O terrível ser carregava um grotesco machado em uma das mãos e um igualmente imenso livro de ferro na outra, em um de seus lados um imenso baú e no outro um alçapão aberto. Logo percebi a medonha dinâmica daquele lugar; de outra porta no fim do calabouço saiam as aparições seguindo direto ao encontro da temível criatura com o machado, pude entender que as coisas desejavam subir pela escada em espiral, assim como entendi que aquele terrível sentimento que antes sentira emanava daquele monstro e que agora, escondido por minha tosca fantasia de fantasma, ele não podia colocar seus olhos julgadores em meu espírito. 

A realidade do que acontecia à maior parte dos que iam de encontro ao monstro é nefasta, o censor consultava algo em seu imenso livro de ferro e na maioria das vezes destroçava aquilo que pleiteava passagem com apenas um golpe, outras vezes abria seu baú e de lá tirava as mais variadas fantasias, algo que seria cômico se não fosse feito por tão desoladora monstruosidade, após vestir a seu gosto, permitia a passagem. Aquilo tudo me parecia extremamente incompreensível, na verdade não podia sequer entender o que eram aquelas coisas que saiam pela porta, minha mente via vagas formas humanóides mas eu podia sentir que se tratavam de algo mais, podia até mesmo senti-las como sua essência, mas incapaz de interpretá-las com minha razão.

Hipnotizado por aquele espetáculo grotesco continuei imóvel apenas assistindo a tudo acontecer. Vi o que minha mente entendeu como uma linda mulher nua dirigindo-se ao monstro, porém senti o que realmente era, uma luxuriosa sensação de sexo e violência em uma mistura abominavelmente atrativa, deus, algo assim faria de qualquer homem um louco desmedido. O resultado não poderia ser diferente; a forma feminina imediatamente fatiada em dois. Agora uma criatura encapuzada saía pela porta, esta diferente de todas que vi antes, foi meu segundo impulso de medo, dessa vez não medo, mas pânico, pude ver o próprio monstro se retraindo, maldição, se aquele titã podia sentir receio aquela coisa tenebrosa deveria ser muito perigosa. Percebi que estava rezando para a criatura fazer logo seu trabalho e banir aquele demônio, o que foi feito mudou o padrão até então, vi que ele foi incapaz de atacar seu algoz, em um rápido movimento colocou-o dentro do alçapão que se abria ao seu lado.

-Ele o mandou de volta ao nível inferior – falou pela primeira vez naquele lugar meu guia. – veja se até mesmo este gigante não pode eliminar aquilo, você quer realmente ir para o lugar que o originou?

Com a ausência do ser meu medo havia esvaecido e minha tola coragem retornara, sim eu iria até o fim, esta fora minha escolha antes e agora não havia retorno. O guia iniciou a caminhada até a porta de onde saiam os que seriam julgados e antes de a cruzarmos pude ver mais uma singularidade, algo já fantasiado cruzou o calabouço, surpreso fiquei ao perceber que o fantasiado passava direto pelo monstro, não pude apreciar por muito tempo a situação, em seguida já cruzávamos a fronteira para o verdadeiro inferno.

Dessa vez não havia escada, desabei nas trevas e continuei caindo até perder a consciência. Acordei em um mundo desconexo, qualquer razão ou ordem passou longe de conhecer aquela terra. Acima de tudo, aquela realidade era constituída de sentimento materializado, tal como sentira ao ver as criaturas do nível anterior, agora a própria substância da realidade possuía um sentimento como essência, uma emoção dentro de uma emoção. O pior era a completa ausência de freios, nada continha aquele turbilhão de sensações, estava no mundo dos extremos, aquela sim era a liberdade em sua essência, e que hediondo inferno era esse. Sentia-me violado por todo tipo de sentimento primitivo, compreendi que só podia existir naquele lugar pois ainda possuía uma mente que desesperadamente tentava filtrar o que eu sentia, ainda assim a sensação era medonha. Meu guia havia sumido e decidi explorar aquele estranho universo enquanto ainda podia manter meu eu parcialmente isolado de sua ofensiva. Vaguei por aquela terra devastada, vendo e sentindo absurdos, indo da alegria incapacitante ao desespero total, minha mente tornara-se um campo de batalha, podia sentir o dique se rompendo, prestes a permitir que aquelas sensações me invadissem por completo transformando-me em mais um de seus animalescos habitantes.

Tal como os sentimentos, o cenário variava sem nenhuma lógica, em determinado momento me encontrava vagando por um deserto infinito, sentindo as urgências mais básicas da sobrevivência, disposto a qualquer ação para conseguir meios de sobreviver, a sede a fome e a necessidade por abrigo, de certa forma sabia que não poderia morrer materialmente pois sequer existia concretamente naquela realidade, ainda assim minha mente absorta por tão avassaladoras necessidades ignorava minha razão, e prosseguia em suas conjecturas desesperadas para capturar mantimentos. E tão repentinamente como começava, era impelido a outra sensação e com este movimento o cenário também variava; agora estava na entrada de uma enorme caverna, o medo do desconhecido preenchia meu ser, sabia que deveria entrar, mas relutava e assim criava racionalizações do porquê não deveria prosseguir, assim fiquei por um bom tempo, lutando com meu medo primordial, até finalmente adentrar nas trevas e ai ser lançado a outro cenário e sentimento randômico. Agora uma cidade, podia perceber a escalada da complexidade das emoções, embora ficasse claro a importância dos sentimentos primordiais, podia entender novas e intrincadas interações surgindo e tal como elas o ambiente de fato tornava-se mais complexo. Buscava por algum fim na cidade que como num cruel pesadelo ia aumentando cada vez mais, o que antes poderia ser uma pequena cidade suburbana era agora uma enorme metrópole tornando minha busca algo inconcebível, nesse cenário o sentimento de tempo passando era o cerne do sofrimento, tendo tido a experiência com sensações basais e por mais desoladoras elas fossem, agora havia entrado num inferno de outro nível, percebia que a complexidade tornava tudo pior, era como adicionar escalas e mais escalas de sofrimento ao invés de existir apenas um plano de dor. A cidade crescia e crescia e as possibilidades de achar o que procurava diminuíam a cada momento, a antecipação do fracasso destruía minha vontade mas a idéia de permanecer inerte em tão perversa existência sem nenhum objetivo senão a medonha sensação de imobilizada derrota era totalmente inconcebível, permaneceria naquela horrível busca até o fim e apenas para evitar sentir pior sofrimento. Por fim acabei em interações dentro dessa que entendi como a interação última, a busca da verdade pela verdade, acabava descobrindo realidades sobre meu ser ao abrir portas aleatórias, ao andar em ruas e ter percepções espontâneas, mas no fim sempre me sentia correndo do tempo que estava a um calcanhar de me alcançar e aumentava sua velocidade me obrigando a fugir ainda mais.

Tive o que se poderia dizer de um tempo de uma vida nessa existência insana até certo dia inesperadamente encontrar o que tanto buscava, soube imediatamente que havia cumprido minha antiga missão, assim como soube que naquele mesmo instante criava-se para mim uma nova busca, mantendo assim a sensação de urgência contra o tempo inalterada. Havia em fim encontrado a grande resposta; a verdade é a busca e não o objetivo, tão logo apodera-se do objetivo uma nova busca torna-se a verdade. A procura deve sempre existir e a desolação que ela causa nunca poderá ser suprimida.

Não havia mais sentido em prosseguir naquele mundo, tendo a compreensão queria de fato vive-la em uma realidade material em que ao menos continha sentimentos opacos e não materializados como naquele mundo nefasto. Chamei por meu guia, que apareceu como se houvéssemos estado juntos todo este tempo.

-Estou pronto para voltar, você estava certo e a verdade sequer é realmente uma verdade, não estou mais livre por tê-la entendido, na verdade estou apenas mais ciente da real falta de liberdade da condição humana, agora me leve de volta.

As últimas palavras de me guia enfim me revelaram a mais importante e medonha realidade.

-Não entendeu não é mesmo? Essa é sua mente, nenhum homem deve conhecer assim as profundezas de seu próprio ser, agora você é apenas uma doença emocional, saber o que você sabe tornou-o uma verdade perigosa demais para sua mente consciente. O guardião do segundo nível jamais permitirá sua passagem, irá jogá-lo pelo alçapão de volta a este mundo todas as vezes que tentar passar. Nem uma fantasia poderá mascarar seu perigo, entenda, você teve uma vida para entender, ninguém pode suportar o entendimento total de uma vez só.

A realidade é simples, minha busca pela verdade aprisionou-me dentro de minha própria mente.

Um comentário:

  1. Gostei muito desse conto. A surpresa de que percorrer o caminho da floresta é na verdade desvendar os caminhos da própria mente e do inconsciente foi aguçando minha vontade de chegar ao desfecho da história, praticamente devorei a tela, rsrsrs.

    Ah, baixei Paprika, espero assistir hoje.
    ;)

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